terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Dolore e as narrativas do Himalaia

Por Viriato Carnegão.

E foi então que ele disse aquelas palavras que jamais sairiam de meu coração.

- Dolore não é uma arte marcial. Dolore é a própria arte! Pois para que serve a arte se não for para elevar o espírito humano? Dolore brota no coração, e apenas lá busca o mérito da vitória. Dolore... (suspiro profundo) é a defesa pessoal contra o maior de nossos inimigos: o monstro que habita a cada um de nós.

Houve então quem retrucasse. Um aluno experiente em outras artes, fazendo uma daquelas perguntas que serve apenas para exibir o próprio conhecimento.

- Mas mestre, muitas técnicas de defesa pessoal envolvem filosofia e arte! Sou conhecedor profundo de diversas delas, como o judô, o karatê, e o kung fu. Todas essas pregam a paz.

O olhar do mestre era enigmático. Um misto de pena e abominação escapava por entre suas rugas e pêlos. Tomou então novamente a palavra.

- Como comparar pneus e bananas? Pois em verdade vos digo que Dolore e o resto não são menos distintos! Ora, como pode vender a paz aquele que não a possui? A paz dos vencedores não é a verdadeira paz! É fácil ensinar técnicas de ataque, e dizer que são técnicas de paz. É fácil ensinar a vencer uma luta esquivando-se da dor aplicada ao adversário, para depois chamá-lo de irmão. Não! Hipocrisia! Como podem ser tão cegos? Aquele dentre vocês que estiver aqui por curiosidade, que se levante e vá. Se o que querem é aprender novas técnicas de ataque, não percam vosso tempo nem o meu. Aqui, só vão aprender a fortalecer o coração, a ver o oponente como irmão, e a própria luta como única inimiga verdadeira.

O olhar do mestre ao dizer essas sábias palavras era direcionado ao orgulhoso jovem que fizera a pergunta. A intensidade de sua presença era tamanha, que perturbou de modo definitivo aquele inflamado espírito.

Hoje creio que o mestre estava ao controle de tudo, afinal. Por décadas atribuí erroneamente o que se seguiu a uma perfeição do destino, mas ora vejo que estava errado.

O jovem se levanta impulsivamente, sob a terrível emoção de ter seu orgulho ferido. Acostumado às glórias e elogios como lutador, nunca fora humilhado em público. Ademais, segundo o velho, de nada valiam seus conhecimentos anteriores.

Desafiou-o.

O mestre, inabalável, permaneceu sentado, as pernas cruzadas, olhos fechados. O jovem, sem poder voltar atrás, chamou-o de covarde, e disparou ofensas outras, até que um pupilo, iniciado nos caminhos do dolore, alertou: - ele aceitou seu desafio. Essa é sua posição de luta.

O olhar do jovem revelava todo o seu despreparo. Sem um único movimento, o mestre já o havia derrotado, e somente ele não aceitava essa verdade. O rosto do jovem expressava algo como horror. A segurança daquele velho, chamando-o para a briga sem sequer se levantar, de algum modo o encheu de medo, e ele tentou uma saída honrosa:

- Sabia que eras um covarde. Pro inferno com sua arte!

E disse isso com olhar de nojo, cuspindo ao fim. Virou-se em direção à saída e começou a caminhar. Foi quando a voz do mestre ecoou:

- Ora, não tens coragem de lutar contra um velho meditando? Tens coragem de quê, afinal?

Para o jovem aquilo foi demais. Ele parou, os olhos já chorando de raiva. Virou-se e correu em direção ao mestre. Alguns, como eu, quiseram intervir diante de tão evidente agressão a uma pessoa em idade terminal, mas o pupilo nos impediu. A calma em seu olhar nos convenceu.

Narrarei de maneira sentimental o que vi, posto que não poderia ser diferente. O que se passou naqueles cinco segundos mudou o rumo de minha vida, e hoje só consigo me lembrar da cena em câmera lenta.

O jovem, expressão de ódio e pânico, corria pelo interior do monastério. Era, para ele, aquele momento de responder a si mesmo o que queria ser na vida. Sob efeito de tamanha emoção, e com a carta branca dada pelo próprio velho, pouco importava se alguém morreria. Isso ficou claro diante da violência da voadora encomendada pelo jovem desafiante. O alvo, claramente, a face do velho mestre, inerte, com seus olhos calmamente fechados.

Quando o pé do lutador estava a cerca de quarenta centímetros de atingir o alvo, o mestre moveu-se à velocidade incompreensível. Apoiou as mãos no chão com firmeza, recuando, e depois avançando o dorso. De modo inacreditável ele atirou com enorme força sua própria face contra o pé do desafiante, provocando verdadeiro estrondo no ambiente silencioso daquele belo monastério.

Fechei brevemente os olhos. Quando tornei a abri-los, já não os podia dar qualquer crédito. De um lado, rolando e grunhindo no chão, o jovem com a perna esfacelada. A tíbia havia se soltado da articulação patelar, adentrando brevemente a musculatura da coxa e perfurando a pele. A perna havia encolhido em cerca de 5 centímetros! Do outro, o velho com o nariz explodido, o rosto banhado em sangue. Havia também leve afundamento craniano e filetes rubros escorrendo pela fronte. Contudo, respirando pelo canal lacrimal, reconstruía com as mãos o próprio rosto, conservando de modo incrível a lucidez e a serenidade.

Todos estavam em choque. Após uns segundos de hesitação, o grupo correu para acudir o mestre. Notei neste instante que o jovem estava sozinho, e seu estado era aparentemente muito grave.

Devo dizer que sou médico. Não médico formado em universidade, como os que você conhece. Mas médico graduado pelo grande Pajé Zomba-da-Morte, líder espiritual dos eremitas índios Tzupac, cuja localização não posso tornar pública.

De imediato calculei a extensão dos danos, e vi que o jovem não voltaria a andar com aquela perna em menos de dois anos. Com cuidado trouxe o osso de volta, dando minha própria camisa para o jovem morder.

Minha iniciativa chamou a atenção geral, e, como o mestre dispensou toda a ajuda, logo já tinha ajudantes sob meu comando. Conseguimos limpar o ferimento e estancar o sangramento. Imobilizamos a região, e encaminhamos o rapaz para o hospital mais próximo. Apenas uma cirurgia poderia recuperar vasos, tendões e ligamentos. Estávamos no Himalaia.

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