sábado, 7 de novembro de 2009

Bugre na cozinha


Há quem me compare com Forrest Gump, não por eu ter dado certo na vida - eu não dei -, mas por ser um bom contador de histórias. E isso acho que sou mesmo. E se o tempo deixar, quero começar a contar algumas aqui, todas 100% verdadeiras.

Mas não vou começar pela melhor delas, ou a mais bizarra. Vou, na verdade, relatar uma bem banal, da qual me lembrei hoje, ao ver uma matéria besta na televisão, que tratava dos benefícios do consumo de abacate para a saúde.

Bom, eu tive a sorte ou o azar de passar por essa experiência mágica que é viver numa república durante o período da faculdade. Mas veja bem, não era uma república qualquer, e sim um verdadeiro antro de bugres, uma casa da mãe Joana, na qual chegaram a morar 8 condenados ao mesmo tempo. E claro que essa convivência rendeu inúmeras histórias, a maioria delas com final nada feliz. Se você sabe o que é ter que deitar antes da hora, simplesmente por querer cagar e não ter papel higiênico em casa, então faz ideia do que eu estou falando.

E, sim, houve um dia no qual fiz essa besteira de comprar um abacate no supermercado, na esperança de conseguir fazer um creme parecido com o que minha mãe fazia. O episódio inteiro foi uma derrota só.

Infelizmente, a maior parte das mulheres de minha geração cozinha como quem estupra, e minha namorada na ocasião não era diferente. Uma mulher linda, super intelectualizada, mas que se transformava num bebê de colo quando o assunto era preparação de alimentos. Contei com a ajuda dela para preparar o tal creme, e foi a pior coisa que eu poderia ter feito.

Para começar, logo ficou claro que ela não tinha a menor noção de como avaliar se o tal abacate estava maduro. Muita atitude, muita segurança, e no fundo ela não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Primeiro resolveu apertar, e aí julgou que estava legal. Então abriu e viu que não tava nada legal, na verdade tava verde pra cacete.

Foi quando a coisa começou a fugir ao controle.

Percebendo que a fruta ainda tinha muito o que madurar, minha brilhante namorada se dedicou a fazer um "curativo" no alimento. Sem tirar o caroço, ela envolveu a parte da incisão, e fez uma bandagem, unindo novamente as duas metades. "Maravilha!" - pensamos.

Calculamos então que dali a 2 ou 3 dias a fruta estaria no ponto. Vencido o prazo lá fomos nós, retirar 'os pontos'. E, de fato, ao menos na consistência o abacate parecia no ponto. A cor, no entanto, havia oscilado nitidamente em direção ao amarelo. "Ah, deve ser normal..."

Por algum motivo estávamos otimistas, e nesse clima seguimos a receita à risca, sem provarmos o abacate previamente. E lá fomos nós: leite, um pouco de leite condensado, um pouco de açúcar, e o abacate, claro. Aos poucos foi juntando gente em volta, pois aquilo não deixava de ser um evento libertador dentro da rotina de campo de concentração de uma república pré-cambriana. "Vamos comer algo gostoso, saudável, e que lembe um pouco a comida de casa" - pensamos.

Desnecessário dizer que qualquer traço de otimismo foi inapelavelmente afogado na primeira golada. Tão logo aquele xorume tocou nossas papilas gustativas, a biologia acionou o alarme. Como alquimistas às avessas, descobrimos por acaso a fórmula do amargor absoluto. Basta abrir um abacate verde, e fazer um curativo com o caroço dentro, e deixá-lo maturando três dias numa geladeira. Pronto. Nem toda a açúcar do mundo poderá diminuir o estrago.

Isso ficou claro logo de cara, mas havia se formado uma expectativa em torno daquele creme. Toda a república havia se unido, criando um ambiente muito otimista. "Ah, faltou um pouco de açúcar" - alguém falou.

E lá fomos nós colocar mais açúcar. Torna a bater, torna a provar, e novamente os pêlos do corpo se arrepiaram. A desgraça continuava abominável. "Xii, continua amargo. Vamos botar bastante açúcar agora. Devia ser assim que minha mãe fazia".

Bom, não adiantou. Sem qualquer exagero narrativo, nós acabamos com o pote de açúcar refinado da casa, e o resultado não mudou. Também se foi uma lata de leite condensado, e nada. Terminei meu estoque de açúcar cristal, experimentamos jogar xarope de guaraná, e por fim até mesmo açúcar mascavo foi parar lá dentro.

Olhando agora, passados sei lá, uns 8 anos, me dou conta de que havíamos todos abraçado a demência. O barco estava afundando, mas como capitães tornados cegos por uma obsessão bestial, nos recusávamos a aceitar a dureza dos fatos. Havia uma tensão no ar, algo como um medo instintivo de que aquele fracasso pudesse ter um significado maior.

Porra, falando sem rodeios, quem não consegue fazer uma merda de um creme de abacate, não consegue fazer porra nenhuma na vida! Estamos falando de comida, cara. Uma pessoa precisa saber preparar algum alimento, sob pena de depender dos outros a vida toda! Aquilo estava nos desesperando, porque não tinha como dar errado. Porra, jogue leite, abacate e açúcar, bata no liquidificador, e se alimente. É assim que as coisas funcionam. Com nossas mães era tão simples, e lá estávamos nós, um bando de derrotados na vida, lutando contra a constatação de que não tínhamos mesmo vingado.

A derrota era inevitável, tava clara como água, mas ninguém queria admitir que pudéssemos ter chegado a um ponto tão baixo. Já não havia mais açúcar de qualquer espécie, nem tampouco adoçante, o que nos deixava com poucas opções. Algumas vozes começavam a sussurrar que não havia mais o que fazer, e aquilo mexeu ainda mais com meus brios. Com pouco tempo para pensar em algo que fizesse um mínimo de sentido, parti para uma atitude desesperada. Resolvi diluir aquela merda em água. Muita água.

É aquilo: se não pode vencê-lo, junte-se a ele. Tá ok, o amargo é inevitável? Ok, então pelo menos vou quebrá-lo com água, e a coisa deve ficar suportável. Uma lógica frágil, com certeza. Mas ainda assim uma lógica, e ademais eu não tinha muito mais o que perder ou tentar.

Bom, esse é o tipo de final que nenhuma história precisa ter. Uma lição importante é saber a hora de parar, em relação a qualquer coisa na vida. Quem perde essa estação tende a ver as coisas só piorarem, deixando qualquer traço de dignidade pequeno nos retrovisores.

Não preciso dizer que a coisa só piorou, não é? O que já era abominável se tornou um sacrilégio, e nem com toda minha demência e teimosia consegui tomar mais do que um copo. A 'questão de honra' não teve forças para encarar tamanho esgoto, e além de tudo tive de admitir publicamente minhas fraquezas.

Ao fim e ao cabo, aquele malfadado projeto havia consumido praticamente todas as reservas de uma casa, que em condições normais já vivia em regime de guerra. Talvez um saco de açúcar não faça muita falta em sua casa, mas numa república de sobreviventes de guerra, o prejuízo iria nos custar muito, muito caro.

Em breve conto outras histórias por aqui. Valeu!

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